Escrito por: Lisa Marques Muito se tem falado de turismo e de políticas de Mar, uma das principais apostas estratégicas do Plano Estratégico Nacional de Turismo, onde o surf se posicionou com destaque no produto “Turismo Náutico”. O Turismo de Portugal reconheceu-o e deu-lhe o devido destaque na Agenda, fazendo-se valer de ídolos das massas para apelar ao turismo em Portugal, como foi o caso da campanha com o embaixador “Gmac”, numa série de vídeos que documentavam a procura por ondas, de norte a sul do país, do surfista americano que recebeu 60 mil euros para vender o nosso peixe lá fora.
O surf tem se vindo a assumir como uma actividade económica rentável, e um forte contributo para o desenvolvimento das regiões costeiras, através da riqueza gerada e das oportunidades criadas nos locais receptores. O mercado cresce a cada ano, assim como o número de praticantes de surf. As estatísticas avançam que em média um surfista desloca-se mais vezes durante o ano para fora do seu local de residência para praticar surf, e que o surf é o desporto que os europeus mais gostavam de experimentar. No entanto, Surf é ainda sinónimo de actividades em meio natural, que se pressupõem sustentáveis e ecológicas, mas quando falamos de turismo de surf infelizmente a realidade é diferente. Na passada semana saíram noticias de novos investimentos no turismo de surf em Peniche, em que um deles tem intenções de avançar na direcção Norte, rumo a locais que eram considerados secret até há uns anos atrás, e frequentados principalmente por surfistas que preferem a beleza natural às paisagens construídas, e que vivem autenticamente o “live for search”, um dos slogans de uma grande marca de surfwear. Essa é de facto a essência do surfista. A busca por ondas perfeitas desconhecidas, e sem crowd, um encontro genuíno de comunhão com o meio natural. Mas para além de slogans, terão as grandes companhias que vendem surf algum compromisso em manter os destinos de surf sustentáveis? Ou simplesmente erguem infra-estruturas e criam produtos dirigidas à tribo do surf, sobre a camuflagem do “live the dream” e do “surf lifestyle”, sacudindo as responsabilidades e impactos ambientais que a sua atividade produz? O mercado continua em crescimento e os investidores avançam com o capital. Mas quantas mais unidades de alojamento interessam criar? Mesmo com prefixos “Eco” ou sufixos “Sustentável"? Interessa-nos transformar locais virgens em betão, e encarar a irreversibilidade posterior? É isso que a demanda exige? Qual é a nossa capacidade de carga? Existem Limites para o crescimento? E quando percebemos que já lá chegámos? E principalmente, estamos conscientes que precisamos de parar? Estamos dispostos a isso? “O surf! O paraíso dos surfistas! A Pipeline europeia! Marrocos na europa! Mavericks na Papoa! Venham, venham” De facto comparações e identificações não faltam. Enquanto surfista, considero-as verdadeiramente meritórias e honestas. Surfistas ou não, mas cientes destas vantagens e riquezas naturais, a marca “capital da onda” foi criada como imagem identitária da cidade de Peniche. Uma oportunidade para inovar o Turismo de Mar praticado na cidade. Com a visibilidade do WCT na cidade e a exposição mediática, a tribo do surf mobilizou-se massivamente, e vai crescendo com as “modas”. Alguns turistas, passaram a residentes, instalando-se para o ano, numa moradia de quatro ou cinco assoalhadas, chamaram os amigos nessa época, os que no ano seguinte têm a mesma “visão” e decidem fazer o mesmo. Os surfcamps abrem porta sim, porta não, sem estratégia, sem planeamento integrado, sem rigor nem controlo. Aulas de surf podem ser solicitadas, porque tudo se arranja na terra de ninguém. Caravanistas, venham eles, porque Peniche é o verdadeiro paraíso. Os parques existem, mas ninguém lhes exige que os usem. A facilidade à agua da rede é um verdadeiro convite. A beleza e estrutura das nossas paisagens naturais é comprometida com caravanas e carrinhas aparcadas nas arribas e parques de estacionamento desde os Belgas até à Consolação. (Para mim, tanta gente só nos traz problemas de “trânsito”, ao invés de benefícios.) O rigor das Aulas de Surf interessa cada vez menos, e são cada vez mais uma oferta complementar ao Camp, ao Bar, ao restaurante, à loja, todos vendem o Aloha do Surf. Qualquer instrutor de surf sabe que não passa de um entreteiner, que é pago para vender a ilusão de um lifestyle, e que o que importa é “pô-los de pé”, nem que seja numa prancha SUP. E assistimos a instrutores de surf a empurrar alunos uns atrás dos outros, nas ondas uns dos outros. Os instrutores adoptam muitas vezes uma atitude servil, compactuando, apesar de não concordarem com a política. Estão conscientes que serão os primeiros a levar com o excesso de crowd nas suas sessões de free surf. Os cursos da Federação nem sequer são exigidos em muitos dos casos, não existe fiscalização por parte da FPS, nem monitorização por parte dos empregadores, que desde que vejam os seus clientes satisfeitos, não querem saber de mais. Até porque estão a tentar perceber onde irão buscar o valor que irão retirar das aulas de surf, para que fiquem 5€ mais baratas que as dos concorrentes.… O turista que escolhe um surfcamp, é na sua maioria, iniciado no surf, e procura aulas e acompanhamento técnico, para que possa sentir-se mais seguro e evoluir mais rapidamente no desporto. “Nós” enquanto monitores - os agentes, ao vendermos a experiência, temos que garantir o momento em que o turista faz o stand up e desliza sobre uma onda. Temos que faze-lo acontecer, custe o que custar, com vista à valorização da experiência, porque esse é o momento intangível que determina o grau de satisfação de um turista que quer ser surfista. No entanto, a sobrexploração do território com um turismo de surf massivo, poderá implicar ameaças não só à capacidade de regeneração do próprio meio ambiente, como colocar em risco a satisfação do visitante, com a nossa incapacidade de garantir uma oferta de qualidade que corresponda às expectativas do turista. E essa incapacidade deve-se, maioritariamente, a constrangimentos externos ao próprio negócio, independente do compromisso agente - cliente. O crowd, por exemplo. Um pico cheio de crowd não é de todo uma oferta apelativa, seja para o surfista experiente como para o surfista beginner, comprador de uma experiência de surf, que vê a sua segurança posta em risco. Com o aumento do numero de surfcamps e surfschools, o crowd dentro de água tem estado tramado. E pior que tramado é estarem 100 alunos, surfistas inexperientes, com um tipo de “embarcação recreativa” a seu cargo, sem terem “carta para a conduzir”. E o turista surfista vê a sua diversão ser substituída por apreensão, medo, e quiçá um sobrolho aberto. Mas então como regulamentar e restringir espaços por escalões, ou níveis de aprendizagem, sem que seja necessária uma carta de condução, ou um imposto de circulação? Porque quando se tomam medidas de restrição de utilização, ou pagamento de taxas de utilização, as consequências são graves principalmente para a comunidade anfitriã, que não vejo aceitarem-nas de animo leve. Quando os locais começarem a defender e a reclamar o que é seu, as consequências poderão ser muitíssimo graves. Ainda hoje ouvi um amigo queixar-se de quão impossível estava o crowd no pico, e que não estava para isso. Portanto vamos mudar antes que tenhamos que mudar. A crescente procura do surf não pode ser resolvida com a construção de mais um “campo da bola”, porque estamos dependentes de um recurso natural. E portanto, o surf, como actividade em meio natural, capaz de comprometer os recursos, devia ser respeitada e gerida. Queremos realmente transformar Peniche em um “ALLgarve" do surf? Queremos mesmo que Peniche seja para todos, fazendo apelos desmedidos à vinda? Que tipo de turista estamos realmente a trazer? Queremos ter picos e estacionamentos cheios e unidades de alojamento vazios? Acho que merecemos mais do que isso. Acho que devíamos abrandar e repensar. O que quer na verdade um surfista? Quais são os motivos que os levam a escolher o destino Peniche em detrimento de outros locais similares na Europa, como a costa norte de França, que muitas vezes ouvi citada como modelo a seguir? Enquanto surfista aposto as minhas fixas para a qualidade das ondas, a longa extensão de linha costeira, a possibilidade de descoberta de alguns “secrets”, a beleza natural, a consistência, a segurança do País, cada vez mais importante, a facilidade para pernoitar, o clima, o custo de vida acessível… O que temos é demasiado bom, mas estamos a vender um produto Premium a preço de saldo como se interessasse despachar. Mas não! Temos história de surf desde 1964, cultura autêntica de surf, estórias mil para serem contadas e exploradas. Uma envolvente cultural de fazer inveja a qualquer gestor territorial. A ilha da Berlenga consagrada pela UNESCO pela sua biodiversidade, inúmeros naufrágios ao largo da península que fazem as delicias dos historiadores, arqueólogos e mergulhadores, uma comunidade académica com investigações técnicas nas áreas do turismo, bio-tecnologia e surf, reservas geológicas, inúmeras praias de Sol e Mar, Ondas de qualidade mundial, pesca e gastronomia…. Pela proximidade, Peniche tornou-se uma meca obrigatória para qualquer surfista Europeu, e ao contrario do que o senso comum acha, a maioria dos surfistas tem um grau académico elevado, e estão interessados em oferta cultural para enriquecer a sua experiência turística, assim como um compromisso ambiental anexado à sua estadia. Estes, ou os seus acompanhantes estariam interessados em despender dinheiro extra para ter outras actividades que lhes dessem a conhecer mais intimamente o destino Peniche. Um surfista mais experiente, pelo contacto com o meio natural para seu próprio proveito e diversão é também mais consciente. Considero que fazendo do desenvolvimento sustentável uma norma, podemos convidar os turistas e surfistas a estarem envolvidos, actuando na consciencialização do indivíduo, e consequentemente actuando sobre os seus valores de consumo posteriores. Quando comecei a surfar, há mais de uma década atrás, fi-lo por vontade e ambição próprias. Renunciei a algumas coisas em prol de outras, foi uma escolha consciente. Era um processo moroso, mais delicado, de auto-superação. Aprendi a ouvir os locais, aprendi o respeito e as prioridades dentro de água, ainda antes de me por em pé. Estava a escolher um estilo de vida e não uma experiência, com todos os compromissos que isso acarreta. Mas aquilo que a que assisto hoje em dia, é que os valores intrínsecos ao surf, ao verdadeiro surf, foram esquecidos em prol de uma industrialização, de um mercado em ascensão, e para proveito de uns quantos. Valores de Respeito pelos outros e pelo Ambiente, Partilha, Harmonia com a natureza, Liberdade, Preservação ambiental, maior consciência cívica, sentido de responsabilidade e solidariedade. Há muito que a industrialização do surf lhe retirou a alma. E essa falta de valores faz-se sentir na forma como o surf transformado em produto é vendido pelos agentes turísticos. A meu ver, a valorização do Surf e dos seus valores intrínsecos, poderia ser um principio para a mudança de paradigma no turismo de surf. Os valores do surf poderão ser um instrumento poderoso para uma mudança de consciência, tanto para os responsáveis por negócios ligados ao surf, como para o consumidor, que muitas vezes compra um produto em vez de outro por desconhecimento, impulso, inconsciência, etc. O surf pode tornar-se uma forma de educação para uma maior consciência ambiental, ao mesmo tempo que promove um retrocesso às origens, ao essencial, podendo agir sobre os comportamentos de compra do turista de surf, que percebe que as suas acções estão directamente implicadas na sustentabilidade não só de um território, como na sociedade de consumo em que se insere, contribuindo activamente para a destruição do planeta. Mais uma vez, considero que devíamos parar para ponderar. Se estamos a ensinar surf, então que formemos surfistas. E um verdadeiro surfista é um ser integro e consciente. Vamos valorizar o nosso território e a nossa identidade como um bem precioso, e depois o surf como ferramenta ideal para o manter intacto. E não como desculpa para uma colonização e consequente destruição de toda a nossa riqueza natural e cultural, e toda a nossa vantagem competitiva e autenticidade, em prol de uma homogeneidade de um destino de surf. Obviamente que nada acontece de um dia para o outro, mas a articulação e principalmente o compromisso entre autarquia, responsáveis por negócios em Peniche, comunidade académica local e comunidade surfista, seria necessária, de forma a traçar estratégias de desenvolvimento sustentáveis assentes nas características do nosso território. E em vez que estarmos a olhar uns para os outros como se fossemos forças contrárias, devemos olhar-nos como uma oportunidade para o desenvolvimento conjunto. Na verdade precisamos uns dos outros, e não se trata de redobrar esforços, mas sim de redirecciona-los todos para o mesmo objectivo, a favor da sustentabilidade. Aquilo que temos já é demasiado bom e deve ser mantido e preservado. A forma mais eficaz de gerir uma mudança é criando-a, portanto é necessário inovar a vários níveis e quem sabe tornarmo-nos um modelo a seguir.
1 Comentário
|
Arquivo
Novembro 2016
|