Escrito por: Lisa Marques A saída da selva soou-me demasiado ruidosa. É aqui na terra dos homens que está a verdadeira selva. Habituamo-nos tanto ao barulho que já não conseguimos ouvir o silêncio. O regresso a Lima foi também o início da Surftrip, e das férias das férias. O autocarro correu até Mâncora durante 17 horas, grande parte do percurso nocturno. Cheguei cedo aos bungalows construídos nas dunas, a 15 minutos de caminhada do grande centro, e a menos de 100 metros da praia. O quarto tinha a panorâmica mais espectacular de toda a viagem! Mas o primeiro passeio na praia em busca de pranchas para alugar revelou-me uma realidade que me entristeceu. As construções na areia tentam chegar-se o quanto podem ao mar. A falta de planeamento, quiçá de conhecimento acerca do avanço do mar, faz com que na praia jazam já algumas estruturas, com as suas fundações de cimento, ferro e entulho expostas e ignoradas. As represas de cimento, e sacos de areia empilhados nas portas dos hotéis são necessárias para que as águas da maré cheia não entrem porta adentro. Mâncora só me impressionou pela tamanha estupidez humana, com a sua capacidade inata de destruir a natureza. Senti vontade de me ir embora, mas sem antes fazer o surfezinho que ansiava há já uns dias. Esta desilusão era ainda um efeito do pós-selva, e tinha que voltar a encaixar-me no meu bando, mesmo voando um pouco ao lado. Por isso arrumei-me lá nos fundos deste relógio ambulante, e pus os pés na água. Encontrei uma funboard de uma marca local com óptimo aspecto, para as esquerdas de meio metrinho que corriam longas a contornar o reef, um pico bastante consistente mesmo em dias de pouco swell e vento onshore. O crowd é tranquilo, e apesar de estar muita gente dento de água, as ondas não são muito disputadas em cima das pedras rasas, onde quebram. Ao apanhá-las no pico, garantimos uma travessia longa, com uma secção mais rápida a abrir no inside. O surf divertido desviou-me as atenções para o mar, para os côcos e as frutas cortadas depois das sessões de surf, os “por-do-sol” limpos ao final de cada dia, e um céu estrelado brilhante nas noites no terraço do bungalow afastado do barulho e das luzes. Em poucos dias já tinha um grupo de amigos com quem conversava e ia surfar. O Axel e o Paul, irmãos e instrutores de surf, ganham ambos a vida com as aulas, que parecem ser bastante rentáveis no Peru. Metade - metade, é o acordo com os donos das escolas. Todas as aulas em Mâncora são privadas, e cada instrutor conduz a longboard de espuma, agarrado ao “tail”, com pés de pato, até que o aluno se ponha de pé. Num dos dias, ao regressar de El Ñuro, onde fomos ver as tartarugas gigantes, decidimos parar em Los Organos. O pico de maré cheia dava direitas e esquerdas bem moles, e pela insistência deles acabei por entrar para uma sessão “sunset”. Disseram-me que com as condições favoráveis quebra uma onda perfeita e tubular. O tempo esgota-se rápido, e a vontade de conhecer outros lugares impôs-se. Por isso, segui para Lobitos, uma praia com diversos picos mais a Sul. O alojamento era bastante mediano, e alugar pranchas também não era tarefa fácil. Pareceu-me uma cidade fantasma, completamente abandonada e desprovida de alma e energia próprias. As madrugadas contemplavam-nos sempre com umas ondas “glass”, mas bastante rápidas. No resto do dia soprava um vento “sideshore” forte, que tornava desagradável qualquer surfada ou caminhada na praia. Apesar dos vários picos, o “swell” e o vento pareciam ser grandes e fortes demais para os picos de “beachbreak” em Lobitos. O Andy, Australiano, falava rápido e com aquele sotaque enrolado difícil de entender, sobre as suas aventuras de surf no Peru. Disse-me que um pico a 10 minutos de distância, chamado Piscinas, tinha estado a funcionar nos últimos dias, e desafiou-me para uma “Sunset” oferecendo-me uma prancha do seu “quiver”. Eu não podia recusar, e o Eduardo, meu companheiro de quarto, quis vir também. O pico parte por detrás de uma falésia, e a entrada para as Piscinas faz-se de duas maneiras: ou contornando toda a falésia caminhando por detrás, pelo pequeno vilarejo, ou remando de um lado para o outro, contornando-a pelo mar. Preferimos remar. As ondas quebravam contra a falésia, e daí as correntes e os remoinhos provocados pelas pedras (ou pequenas piscinas), levantavam a onda para um buraco rápido e cavernoso. E não bastasse este desafio, o “backwash” fazia com o que o “drop” tivesse sempre um saltinho. Eu estava com uma prancha bastante mais fina que aquelas que estou habituada a surfar, e o meu “backside” não é assim tão confiante em ondas mais rápidas. Pensei nos meus amigos “bodyboarders”, que iam alucinar com aquele pico, mas eu só me perguntava o que estava ali a fazer, e como ia sair dali! E saí, aos trambolhões após várias tentativas frustradas de “dropar” uma. “Ao menos não me cortei nas rochas!” confortei-me. Já me bastavam os pés inchados pelas feridas que trazia do “reef” de Mâncora. São dezenas os picos em Lobitos, e uns quantos outros “secrets” que os locais desvendam por 20 dólares por pessoa. Ondas rápidas e tubulares. A “Surfari” é feita em carrinha de 10 lugares desde a madrugada, antes do vento se impor. El golfo, Baterias, El Hueco, Generales, El Muelle, La Punta, e outra dezena de picos que não recordo o nome, fazem parte do percurso de 6 horas. Naquele dia, à semelhança dos dias anteriores, eram poucas as ondas que abriam, e que permitiam alguma diversão, e o surf foi feito a despachar em Baterias. Na verdade eu não estava a sentir Lobitos, e tive uma necessidade de sair dali o mais depressa possível. As ondas não me divertiam, o Hostel prometia coisas que não cumpria, a internet impossibilitava-me as comunicações e o trabalho, e a dificuldade para encontrar locais abertos para alugar pranchas, comprar mercearias e comer era grande. Peguei na mochila e pus os pés à estrada. Quando me acomodei no “colectivo” até Talara apercebi-me que há já algum tempo que não planeava as coisas, e saía disposta a mover-me para outros lugares sem ter nada garantindo no destino. Não comprava passagens de autocarro com antecedência, tampouco ia perguntar horários de partida, e o hostel logo se arranjava na chegada. Já me sentia familiarizada no Peru, percebi que a minha paciência é maior que aquela que julgava ter, e que agora seguia o meu instinto com segurança. Recostei-me feliz ao banco do autocarro, disposta a fechar os olhos. Mas, segundos depois fui interrompida por um senhor com os seus 60 anos que queria saber a minha história, e me obrigou a falar durante as duas horas de percurso. Cheguei a Pacasmayo já perto da meia-noite, e inquiri o primeiro “moto-taxi” por “Hostels” perto da praia. Em dois minutos estava a tocar à campainha do Los Faroles. A noite foi tranquila, e o despertar trouxe-me a boa energia daquele ambiente. O surf estava representado em todas as paredes, e as pranchas arrumadas em frente ao jardim interno. Os cães desejaram-me os bons dias em tom de brincadeira, e fizeram-me sentir em casa. Um quarteirão separava o hostel da praia. Do lado de cá do pontão partia um pico de direita divertido e de esquerda comprida. Do outro lado, picos de esquerda longa a perder de vista. Não estava ninguém na água, e eu antecipei-me. Os sets de metro eram divertidos, porém a corrente para norte era bastante forte. Era sempre melhor sair e voltar a entrar rente ao pontão. O hostel estava cheio de surfistas, e as ondas dos vários picos da praia corriam solitárias. Eu fiquei curiosa para saber o motivo. Nessa tarde, fiquei a saber de um pico de esquerda tubular, El Faro, a 20 minutos de distância de carro. De madrugada todos pegam nas pranchas e no barco de borracha e vão surfá-la. Agilizei as coisas para ir no dia seguinte. Há muito tempo que não via tamanha perfeição. No “outsider” o “swell” de 2 metros entrava limpo e “glass”. Ondas compridas, com várias secções de tubo. Encontrei o Eduardo no pico, que tinha chegado no dia anterior, disse-me que estava “buenaso” e que tinha entrado às 6 da manhã, para ser o primeiro. O “crowd” estava eufórico e tramado! A trupe de brasileiros do meu hostel enchia o pico e destruía as ondas com uma facilidade que já nos acostumámos a assistir. Apesar de tudo a “vibe” era boa, e a “portuga” teve várias oportunidades para surfar, (as menos cavadas, confesso). O barco levava-nos para o pico depois de cada onda, e por isso o “crowd” nunca diminuía com o passar do “set”. Saí satisfeita, e a tremer de frio, depois de 2 horas a surfar só de “lycra”. A água em Pacasmayo era consideravelmente mais fria que em Mâncora. Em 2 dias as previsões diziam que o “swell” ia ficar demasiado grande em Pacasmayo, e era a altura ideal para baixar até Chicama, a um par de horas de autocarro. Já conseguia ver a data do regresso a Portugal a aproximar-se, e tinha que continuar a andar. Chicama perdurou no meu imaginário durante bastante tempo. Em 2010 registei uma marca de “surfwear” com o mesmo nome, e durante os últimos 5 anos acompanhou-me e desafiou-me enquanto “designer”. Foi uma grande aprendizagem no meu percurso profissional. Era como um reflexo de mim mesma, espelhando o meu crescimento, mudança de gostos, e capacidades criativas. Decidi desenhar a ultima colecção no final do verão passado, por vários motivos. Às vezes temos que tomar decisões difíceis, e largar algumas pastas pelo caminho. Nada melhor para encerrar este capitulo, que conhecer a onda que o inspirou, e é impressionante! Apesar de estar meio metro, as ondas corriam com força e perfeição pela praia. Ao redor do pico principal, outras ondas corriam com a mesma perfeição, e sem “crowd”. Em Chicama arrependi-me de não ter a minha prancha comigo. A oferta é limitada, e a “twin-fin” que escolhi não encaixava naquelas ondas pequenas mas de “drop” rápido. Tentei trocar, mas bati com o nariz na porta durante todo o fim-de-semana. Conformei-me e continuei a tentar safar-me como podia com a prancha que tinha. As previsões apontavam que no dia seguinte um “swell” maior chegaria a Chicama. Mas apesar disso o “crowd” estava tranquilo pela manhã. A forte corrente afastava qualquer tentativa de chegar ao pico. Naquele dia, só mesmo de barco, e tive a sorte de um dos barcos me ter rebocado duas vezes para o pico, o que me permitiu apanhar a onda desde o início. Com a subida do mar, a onda ficou mais gorda, e a “twin-fin” revelou-se divertida! Finalmente podia sentir a experiência de surfar Chicama. Mesmo apanhando a onda a meio do caminho, a parede vai-lhe crescendo à frente, infinitamente. Até pensar que quando chegasse ao final, teria que decidir se remava para trás, ou voltava a sair para entrar novamente junto ao pico. De Chicama parti para Huanchaco. Seria o último destino antes do regresso a Lima, e depois a Portugal. Huanchaco está consagrado como Reserva de Surf Mundial desde 2013, e os “Caballitos de Totora” como património cultural da humanidade. A cultura ancestral de harmonia com a natureza e diversão nas ondas nestes quilómetros de costa são ainda preservadas pela orgulhosa comunidade local. Os “Caballitos de Totora” construídos de juncos provenientes do vale atrás da baia de praia, a poucos quilómetros de distância, serviam para as actividades marítimas de subsistência. E nas representações em cerâmicas utilitárias e funerárias das civilizações Moche, Chimú e Caral, é possível encontrar várias peças que mostram a sua utilização desde as praias de Huanchaco até Lambayeque há cerca de 5000 anos atrás. Estes surfistas por necessidade, ao retornarem da pesca a cerca de 10km da costa, encaravam as rebentações de pé, montando o “caballito”, e com a ajuda de um remo comprido de bamboo travavam e dirigiam a pequena embarcação até à praia. Mas foi a civilização Tiahuanaco que se estendeu desde a Bolívia, Peru, norte do Chile e Argentina que esteve na origem da arquitectura destes barcos de “totora” para as suas actividades de mar, e foram os grandes impulsionadores das tábuas de madeira, e do surf como atividade de lazer e entretenimento, quando chegaram posteriormente às ilhas do Pacifico, e daí se estenderam para outros lugares do mundo. Senti que não podia vir ao berço da cultura do surf, sem experimentar descer uma onda com estas canoas que estiveram na base de toda a cultura do surf, que acolhi como estilo de vida há mais de uma década. Mesmo com maré vazia e a quase inexistente ondulação, a minha última missão da viagem foi cumprida com sucesso. Apesar dos 80kg do “caballito" e da curta meia hora de brincadeira, consegui pôr-me em pé, e sentir-me uma total “begginer” em matéria de “Totoras”. O fundo arredondado torna difícil qualquer viragem controlada, e a pequena embarcação acaba por nos derrubar borda fora num par de segundos. A diversão foi garantida, e aguçou a minha curiosidade em saber mais sobre a complexa história da origem do surf no mundo. Esta vontade vai acompanhar-me de volta a Portugal, de onde partirei para novas viagens de encontro a lendas, estórias e histórias mil sobre a génese do surf. Essa será a missão do meu regresso.
Obrigada por me acompanharem através dos relatos de uma viagem que me mostrou que o limite dos nossos sonhos é proporcional ao nosso medo de falhar, mas que isso não significa que seja superior à nossa coragem para ir. Até já.
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