Escrito por: Lisa Marques Regressamos a Lima num tortuoso percurso montanha abaixo. Era o momento de me separar das minhas companheiras de viagem, e seguir caminho para a floresta amazónica. Mas antes, precisava de sentir o verão de Lima, e o sal da água quente das ondas de Miraflores. O mar estava pequeno, e preferi alugar uma “Malibu” para apanhar mais ondas. Depois de um surf divertido, preparei-me para o desafio da selva, e separei a mochila pequena com o indispensável. A mochila grande com a roupa de inverno ficou em Lima, em casa da Katy. Comprei um voo para Iquitos, a capital da Amazónia Peruana, e a maior cidade sem acesso rodoviário do mundo. Para Iquitos só de avião, ou de barco. Estava preparada para sair do avião e sentir um calor húmido que me sufocasse as primeiras inspirações, mas o calor de inverno na Amazónia é suportável, e cheira à relva acabada de regar sobre o sol forte dos dias quentes de verão. Apanhei um “moto-táxi” até ao Hostel que estava marcado desde o dia anterior. O Cauchero, inspirou-se na história do caucho (látex extraído da seiva de uma árvore da Amazónia) para a sua decoração, que mais parece um museu. Iquitos transformou-se em meados do séc. XVIII numa metrópole ao estilo europeu, pelos grandes colonos que exportavam matérias-primas para a Europa, e de onde eram importados os materiais de construção para as edificações na cidade. Depressa se transformou na capital amazónica do Peru, abrindo os caminhos do Amazonas para o mundo. Perto da Praça de Armas são vários os edifícios projectados por grandes arquitectos. Gustave Eiffel projectou a casa de ferro, apelidada como La Gran Casa. Iquitos parece agora uma capital europeia esquecida no tempo. A Amazónia estava nos meus planos desde que decidi vir ao Peru. Queria muito conhecer a selva, e sentir-me nela. É na natureza onde me escuto quando necessito de recuperar a minha paz, e ali rodeada de verde, seria um sossego para a alma. Os “tours” turísticos percorrem cada afluente do rio Amazonas, com visitas a tribos de índios, fotos com animais selvagens, e umas quantas outras artificialidades. Mas eu queria algo autêntico. Depois de uma tarde inteira a procurar alternativas, encontrei o Ulisses, que construiu três “Bungalows” nas margens de um afluente do Amazonas, o rio Tapira, e que com a ajuda de três guias, mestiços, nascidos e criados na selva, proporcionam algumas experiências na floresta. Guiando-me pelo instinto, decidi marcar. A travessia de barco de Iquitos até ao nosso acampamento tardou cerca de uma hora e meia, com paragem num pequeno povoado na margem do Amazonas, onde a vida acontece de forma simples e em função do rio. A pesca serve muitas vezes como moeda de troca no mercado em Iquitos. Os bungalows construídos com madeira, canas e folhas de palmeira eram bastante rudimentares, o WC nas traseiras do acampamento não tinha descarga (preferi o estilo “old school” e ir ao mato), e o duche era na água doce do rio, a 5 minutos de distância. Na verdade nada disso me incomodou durante os 5 dias na selva. Ali desprovida de tudo senti-me em casa. Por entre as actividades de pesca, preparação de refeições, manutenção da habitação e das nossas roupas, tivemos tempo para realizar várias expedições, e descansar o tanto que os mosquitos nos permitiam. Os mosquitos eram imensos, e as camadas de repelente obrigatórias. A mim deram-me tréguas, enquanto que a alguns dos meus companheiros de aventura, as inflamações provocadas pelas picadas sobre picadas eram no mínimo impressionantes. “Mas se não houvessem mosquitos, a Amazónia era o paraíso, e toda a gente queria vir!” diz coberto de razão um dos guias, Miguel. Os mosquitos são os grandes guardiões da selva, inviabilizando eficazmente qualquer tentativa de colonização por parte dos homens brancos. A natureza é imprevisível, e essa é a premissa predominante na selva. Nenhuma expedição pode garantir o sucesso. Os mamíferos são raros de ver, mas ainda assim num dos dias, decidimos procurá-los na outra margem, a uns quilómetros mais a norte. Saímos cinco de canoa para desbravar mato. Avistámos macacos, golfinhos, aves de todas as cores, um urso-formigueiro, e uma preguiça! As preguiças, de ar feliz e lento, bastante lento, drogam-se ao comer as folhas de secrópia, uma árvore autóctone com propriedades alucinogénicas. E a moca perdura-lhes a vida inteira. Ao longo dos dias, o meu sorriso largo foi animando os guias, que me desafiavam com diferentes actividades, e faziam questão de me contarem as suas peripécias na selva. “Aqui na Amazónia se não comes piranhas, elas comem-te!” Aceitei o desafio de ir pescar, apesar de ser vegetariana há mais de uma década. E se conseguisse tirar a vida a algum peixe, o comeria. A cana improvisada com uma tronco fino de uma árvore jovem, e o fio de nylon com um pequeno anzol, comprados no povoado onde parámos no primeiro dia, mostrou-se eficaz. Mas na minha tentativa de pescar uma piranha, saquei um peixe-gato! Tinha o almoço garantido de qualquer das maneiras. O pescado frito, veio acompanhado por arroz (sempre arroz cá) e uma salada de tomate e palmito, a parte interna superior da palmeira. Da natureza o homem da selva só retira o que necessita, e aqui não me senti mal por tirar uma vida. O homem está em pé de igualdade com tudo o resto, sem qualquer ganância nem sentimento de superioridade. Sabe que é a mãe terra que o sustenta. Este sentimento de respeito pela natureza é comum, os rituais indígenas de agradecimento ainda estão muito presentes no sangue dos povos ribeirinhos, e são várias as crenças animistas ligadas à vida na floresta amazónica.
Numa das minhas buscas por informações de “tours” em Iquitos, um dos agentes turísticos tinha-me falado que os guias nos contariam histórias da amazónia. Eu estava muito curiosa, e mesmo estando noutro grupo, decidi inquirir os nossos guias acerca destas lendas. A partir dai, as caminhadas na selva traziam sempre alguma história, e muitas delas ainda perduram na ingenuidade das tribos mais remotas! As arvores ancestrais têm nome, e são a morada dos duendes Chucha Chaqui, que só se mostram aos que os temem, ou vêm-se obrigados a fazer travessuras para mandar embora os que perturbam as suas actividades. As raparigas inocentes também contam que os golfinhos rosados se transformam em homens na lua cheia e as seduzem, e que depois dão à luz descendentes do rio. As aves Ayaymama eram duas crianças, abandonadas pela madrasta na selva, e que depois ganharam asas para poderem voltar a casa, enquanto cantam “Ay ay mama Huischuhuarca”. O seu som ecoa ao cair da noite. O ar quente carregado da noite antevia uma forte tempestade, mas isso não nos demoveu de sairmos de lanternas na mão para apreciarmos a rotina dos animais nocturnos, principalmente das tarântulas. Apesar de tímidas, encontrámos dois espécimes, ambas fêmeas. Atrevemo-nos a pegar-lhes, e a senti-las deslizarem-se com suavidade braços acima, depois de René, um dos guias, nos ter assegurado que as tarântulas raramente picam, e que essa fama devia pertencer às aranhas escorpião. As calças e a camisa larga que me protegiam das picadas dos insectos, estavam encharcadas de suor depois da caminhada larga. Tinha que tomar um banho, ou não ia conseguir adormecer. Mas a noite estava escura para caminhar até ao rio. Ninguém me quis acompanhar, e eu sentia-me exausta demais para um percurso solitário. Tirei os botins, preparei um chá de canela e cravinho, o único que tínhamos no acampamento, e sentei-me ao relento nas escadas da cabana comum. No meio da selva, o ruído ensurdecedor de todas as formas de vida ao nosso redor impõem-se com soberania. Na selva conhecemos o nosso lugar no mundo, e vivemos ao mesmo ritmo da natureza, como um animal integrante de um todo magnífico. A mente aquieta-se, e o espirito reconhece o seu propósito. A chuva torrencial começou a cair sobre a vegetação, fazendo ricochete em todas as direcções. Percebi a oportunidade de tomar um duche de chuva numa noite de lua cheia encoberta pela neblina carregada. As gotas batiam-me na cara com fulgor, e uma poça de água formou-se rapidamente entre os pés descalços na relva. Revitalizei cada célula do meu corpo, e desejei que todas as pessoas do mundo pudessem estar a tomar um duche de chuva, que lhes lavasse as tormentas, os medos, e todos os males da humanidade. Existe um mundo mais puro, onde o instinto vence a intelectualidade, e as emoções são sentidas e partilhadas sem contenção nem preconceito. Se a selva não te muda para sempre, dá-lhe mais tempo, até ao momento em que te sentes parte de um todo muito maior que qualquer vontade própria. Até já Amazónia. Vou voltar.
1 Comentário
11/5/2016 23:23:17
Nossa. Que relato lindo. Me senti lá com você. Estamos com uma proposta para conhecer Iquitos, mas a trabalho. Com certeza vou querer conhecer esta face da cidade também.
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