Escrito por: Lisa Marques Da Bolívia fomos diretas para Cusco, e a sede do império Quechua, o “umbigo do mundo”, como significa literalmente no dialeto quechua. Depois da caótica e ruidosa La Paz, a tradicional cidade de Cusco revelou-se um descanso para a alma. As paisagens verdejantes e a vida rural simples que circundam o vale de Cusco são pura inspiração. As cores vivas nos tecidos dos trajes tradicionais contrastam com o alaranjado granítico das edificações coloniais no centro da cidade. E a leveza que a época carnavalesca trouxe, encheu as ruas principais de balões de água, “spray” de espuma e muita animação! Mas a indústria turística não descansa, nem pára para foliar, e os folhetos com ofertas variadas vão surgindo a cada passo, pelas mãos das dezenas de pessoas que tentam seduzir os turistas nas ruas perto da Praça de Armas, a praça mais central da cidade (No Peru, todas as cidades têm uma praça de Armas, e é um importante ponto de referência). Podemos encontrar as "free tours" nas cidades mais turísticas do Peru, e são importantes para que façamos o reconhecimento do território mais rapidamente (entre 2 a 3h de caminhada), e com a ajuda de um guia local. Nesta "free tour", a primeira paragem foi num restaurante tradicional onde nos serviram carne de alpaca para degustação. Apesar de se parecer com carne de vaca, pela cor mais escura, os não vegetarianos disseram que sabia a frango, mas um pouco mais suave. Continuámos a caminhada até ao Cristo Branco que abraça a cidade, uma réplica pequena do Cristo Redentor no Brasil, e fomos descendo as ruas estreitas novamente até à praça de armas. A altitude de 3.399m torna qualquer caminhada desafiante em Cusco. Por ter sido a capital do império Quechua, ao redor de Cusco são bastantes os locais arqueológicos para visitar, e comprámos dois tours. São a melhor opção para quem quer visitar o máximo de locais arqueológicos num curto espaço de tempo. Pisac tem muralhas elevadas, e estende-se por 4km2. Serviu de laboratório agrícola, de observatório astrónomo, e de residência a famílias nobres. É um dos locais arqueológicos mais importantes do vale Sagrado dos Incas. Os terraços construídos montanha acima permitem o cultivo de várias espécies, principalmente batata (existem cerca de 3.800 espécies de batatas). O mesmo acontece em Moray, num sistema de terraços afundados em círculo num vale próximo, onde as temperaturas podem oscilar 1 grau entre cada terraço. Na saída do complexo vários artesãos estendiam o seu artesanato em mantas no chão, enquanto senhoras locais coziam maçarocas de milho em panelas altas. Fiquei curiosa, e comprei uma. São acompanhadas pelo típico queijo, que tem aspecto de tofu, e é bastante intenso e salgado. Na verdade gostei muito! Seguimos para Ollantaytambo, um vilarejo que continua habitado e que preserva não só as estruturas arquitetónicas Incas originais, como parte dos seus antigos costumes. Segundo a história, esta cidade foi construída pelo general inca Ollanta, que se rebelou contra o seu rei, depois de este lhe ter prometido o que quisesse se vencesse uma batalha, e quando o vitorioso general lhe pede a mão da sua filha, o rei recusou. E refugiou-se nesta montanha, onde construiu uma fortaleza. Visitámos ainda Chinchero, uma vila bastante tradicional, onde que para além dos terraços de agricultura e da rica variedade de artesanato e lãs, possuí a igreja da Virgem da Natividade em ótimo estado de conservação, onde no seu interior podemos observar os coloridos frescos de pigmentos naturais, numa mistura de arte sacra com representações indígenas. No início da conquista, os espanhóis representavam a natureza e o sol nas igrejas cristãs que construíam, de forma a converter mais eficazmente os nativos, que seguiam crenças voltadas para a mãe terra, Pachamama. Mas o que mais me encantou nas igrejas ao redor de Cusco, foram os anjos de asas coloridas, representados em grandes telas, absolutamente divinais! E a sua história é deliciosa. Na altura da conquista, os pintores europeus estavam com demasiado trabalho no interior das igrejas, e por isso propuseram a pintores locais, da Escuela Cusqueña, iniciada pelo italiano Bernardo Bitti, que representassem cenas bíblicas. No entanto, a figura de anjo não existia nas crenças indígenas, e para se fazerem entender, os espanhóis descreveram-nos como sendo homens com asas. Nasceram assim os anjos com asas de aves tropicais, cheias de cor! E as frutas tropicais e o Cuy (porquinho da índia) assado, também foram representados na mesa da última ceia. A pureza e inocência são geniais!Infelizmente as fotos estão proibidas no interior das igrejas. Hoje em dia o povo peruano é extremamente crente, e por toda a parte (braços e pernas incluídos) se vêm representações da sagrada trindade. O elevado conhecimento de agricultura, engenharia e astronomia durante o período inca é realmente fascinante. Os edifícios incas eram construídos com paredes inclinadas e janelas em forma de trapézio, para resistirem aos sismos que acontecem com regularidade. O sistema inca era também bem estruturado. As terras eram cedidas à população, por cada pessoa que nascia. Quanto mais filhos tivessem, mais terra e alimento teriam. Quando alguém morria, o seu pedaço de terra era devolvido para ser dado a outra pessoa. Em troca da terra, o povo pagava ao seu rei inca com serviços comunitários. Todo o trabalho de edificação de templos, e edifícios comuns, era feito como forma de retribuir ao seu rei, sem qualquer tipo de escravização. Sendo um povo pacífico e sem instrumentos bélicos, a colonização espanhola, aliada a uma grande epidemia de varíola que dizimou e enfraqueceu o povo inca, foi tarefa fácil. Há já alguns dias que me sentia cansada com o ritmo acelerado de toda a viagem. O meu corpo estava a impor-se, e senti necessidade de parar. Decidi ir ao mercado de San Pedro comer uma sopa de vegetais e fui descansar o resto da tarde. Machu Picchu seria o próximo desafio, e tinha que estar bem fisicamente. Os restaurantes para “gringos”, com menus e “decor” ao estilo europeu ou “fastfood” americano, fazem-se notar nas ruas mais comerciais do Peru, mas deste o início da viagem tento fugir-lhes, procurando uma oferta local, e Cusco não foi exceção. No mercado de San Pedro, para além do contacto directo com a população, os menus custam 5 soles em todas as tasquinhas, e todas elas oferecem menus diversificados, com algumas ofertas vegetarianas. Sopas, quinoa e chaufas com vegetais, salteados de verduras, omeletes com papas, etc. Tornou-se um dos meus lugares de refeição preferidos de Cusco. A vida cusqueña real acontece ali, numa mistura de artesanato, comidas prontas, legumes e frutas, talho, peixaria, especiarias, ervas medicinais, pedras e pratas, tudo se pode encontrar no mercado de San Pedro, sempre acompanhados de dois dedos de conversa. Por estes dias também já andávamos a averiguar quais as opções para chegar a Machu Picchu. Os “Inca trails” oficiais podem chegar aos 500 dólares, e nenhuma de nós tinha marcado antecipadamente, porque sabíamos que os preços em Cusco reduziam abruptamente. As ofertas “online” estão muito inflacionadas, e incluem sem exceção, o caríssimo percurso de comboio até Aguas Calientes, o povoado de paragem obrigatória no sopé da montanha de Machu Picchu. Mas quem procura sempre encontra! E durante o pequeno-almoço do dia seguinte no Hostel, uma outra viajante solitária, Vimilde, disse-nos que podíamos fazer o percurso até á hidroelétrica, e depois caminhar os 8km que nos separam de Aguas Calientes por 50 soles (!) e marcámos no mesmo dia! O trajeto tarda 6 horas, em caminhos estreitos e serpenteados ao redor da montanha. O condutor atrevia-se a tentar ultrapassagens que me pareciam impossíveis pela falta de visibilidade e pelas inúmeras curvas e contracurvas. Confesso que preferi fechar os olhos e confiar na sorte em metade do caminho. O percurso pedestre até Aguas Calientes, faz-se entre carris. E a bom ritmo, seguimos a linha do comboio até chegarmos ao pequeno povoado, sempre com a floresta como pano de fundo. Mas nesta tarde, uma forte chuva torrencial precipitou-se, e encharcou-nos até aos ossos! A água era tanta que não conseguia ver nada a mais de 2 metros adiante de mim. Acelerei o passo, quase correndo entre carris, com uma agilidade e destreza que não conhecia. Nenhum pensamento me assolou, apenas um único foco, chegar. Existem duas opções para chegar a Montanha de Machu Picchu, ou caminhando, ou ir de autocarro. A possibilidade de chuva assolou-nos, e preferimos comprar o bilhete. A montanha tardou a revelar-se. Uma intensa neblina branca cobria todo o local, e sentei-me no topo da montanha com esperança de sacar boas fotos assim que os raios de sol ganhassem força suficiente para a dissipar. E esperei quase 2 horas, de caneta e bloco na mão. Não queria perder os primeiros sinais daquele que é um dos maiores tesouros da humanidade, e esperei sentada numa pedra molhada pela noite. Conseguia ouvir as vozes eufóricas dos turistas que exploravam já as ruínas mais abaixo. Mas eu tinha bastante tempo. Tempo para sentir a pureza daquele lugar. No meio das nuvens senti-me perto dos deuses do Céu. Mas a mim faltam-me sempre os deuses do Mar. Pensei se a vista seria melhor para a Amélia e para a Laura, em Huyna Picchu, a montanha por detrás de Machu Picchu. Reconheci o esforço e a determinação do homem que supera a sua condição para viver uma vida mais próxima dos deuses. Mas é também o reconhecimento da limitação humana, porque para quem vive de olhos postos no céu, o topo é também o fim da escalada. Em Machu Picchu não conseguimos entender com a razão, mas com o coração, numa tentativa de aproximação ao divino, e uma humilde submissão face aos rigores da terra. A revelação deu-se em segundos, abençoando aqueles que já esperavam em locais estratégicos com as câmaras preparadas. Machu Picchu é realmente impressionante. Tirei as fotos que quis em diferentes ângulos, e desci para explorar as ruínas. A contemplação foi interrompida algumas horas depois pelo aguaceiro leve, que seria o inicio de uma tempestade, e antecipei-me para a saída.
À falta de um bom vinho português, contentei-me com um tinto aguado chileno. Porque o que interessava no final do dia era o brinde com as companheiras de viagem, depois de termos concretizado mais um sonho. Até já!
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